receita de sucesso

"Desde os tempos da sua fundação, a Portela sempre foi uma grande família. Como tal, às vezes surgem desentendimentos entre seus pares, mas o verdadeiro portelense supera qualquer desavença quando estão em jogo o nome e o prestígio da agremiação."
(João Batista M. Vargens e Carlos Monte)


Clara Nunes, Paulinho da Viola e Manacéa, na mesa, admirados por "seu" Antônio Rufino, ao fundo. Foto do livro "A Velha Guarda da Portela"

Saber e Sabor
Lembramos a relação feita pelo pensador francês Roland Barthes, em Aula, a respeito do prazer de ler, quando traz à luz a mesma raiz entre essas palavras e, conseqüentemente, entre os seus significados. É, também, o que podemos fazer quando pensamos na importância das reuniões dos sambistas em torno do preparo dos pratos e do prazer de saborear as iguarias feitas pelas baianas e pelos mestres da arte de cantar e de cozinhar. Todos sabemos que comer, longe de ser um simples ato de satisfazer uma necessidade básica, é comunhão. Em torno da mesa, comunga-se o prazer da companhia e faz-se o despertar dos sentidos. Celebra-se a vida, no que ela tem de melhor, e se canta o fruto do trabalho. Todos sabemos que as escolas de samba foram criadas em reuniões festivas, quer tenham sido profanas, quer sagradas. E muitas associações são feitas, regadas a petiscos de botequim, cerveja, cachaça, almoços, jantares. A comida engendra a criação.


Feijoada no tradicional "Cafofo da Surica"

Desde os tempos de Tia Ciata, em cujo quintal muito se consumiu em comida e arte, e, sobretudo, nos terreiros de samba, umbanda e candomblé, a comida é oferenda aos orixás, aos pais e filhos de santos, aos partideiros, aos convidados. Martinho e sua grande Vila Isabel já nos serviram a iguaria que foi o grande desfile de 1988, quando mostrou que a Kizomba equaliza as diferenças. É em torno da mesa que se faz a reunião e a resistência. Foi, especialmente, com o fim do regime escravagista que a comida assumiu grande fator de reunião e resistência. Libertos, sem lugar para morar, sem qualificação para o trabalho, como poderiam os negros sobreviver? Restavam os pequenos ofícios e o trabalho ambulante. Em Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro, Roberto M. Moura destaca Gilberto Freyre, ao referir-se sobre a Bahia como grande centro de alimentação afro-brasileira, com o desenvolvimento da doceria de rua. Foi com as negras forras, com seus quitutes de tabuleiro, que começou a se formar uma nova família negra, em torno da qual são criados os filhos, muitas vezes, de pais diferentes. Possuidoras de forte domínio sobre os segredos dos pratos religiosos e das recriações profanas da realidade brasileira, empregar-se como cozinheiras na casas mais abastadas ou vender nas ruas as delícias preparadas em casa foram o caminho natural para manter unida e sobrevivente a família. Talvez seja por isso que a comida no meio do samba tenha tanta importância, quando preparar e comer assumem contornos ritualísticos, quase sagrados, quando são reverenciados os mais antigos, batizados os mais novos e invocados os ausentes e as divindades - o que, para os sambistas, é quase a mesma coisa. A despeito do crescimento das escolas de samba, cujas comunidades são mais elásticas, ultrapassando os simples limites geográficos e se tornando mais sentimentais, em muitas delas ainda são fortes os laços familiares, seja por co-sangüinidade, por consideração ou por afinidade, atualizando os laços de reunião e resistência. Mesmo com as transformações por que passou o subúrbio de Madureira, tornando-se grande centro de comércio popular no século XX, em suas ruas mais residenciais e em suas adjacências - como Osvaldo Cruz, Turiaçu, Rocha Miranda, Bento Ribeiro, Vaz Lobo e nos morros (Serrinha, Congonha, São José), ainda se mantêm vivos os laços a que nos referimos. Se foi nos terreiros e festas de Dona Ester, de Seu Napoleão, de Seu Vieira que foram lançadas as sementes da Portela, também foi nos quintais de Manacéa, Dona Neném, Doca, Argemiro, Surica e na cozinha de Tia Vicentina que essas sementes deram frutos e mantêm fortes as suas raízes.

As ruas e os quintais de Osvaldo Cruz
Nestas ruas, onde nasceu a Portela, fez-se forte o elo entre o saber e o sabor de que nos fala o pensador. Neste pequeno país, íntimo e familiar, a cozinha pontua e perpetua o encontro. No livro A Velha Guarda da Portela, o professor João Batista Vargens e Carlos Monte traçam um pequeno roteiro sentimental com a mais fina gastronomia popular, guiando-nos pelas ruas e ladeiras desse país chamado Osvaldo Cruz. Vamos embarcar nessa viagem seguindo os aromas, os sabores e as melodias ainda imortais? Dutra e Melo Quintal do Manacéa, onde a Velha Guarda se reunia no início do anos 70. Nas rodas de samba, os improvisos e o miudinho. É possível encantar-se com os pratos e com a verdadeira aula de samba que foram registrados no documentário "Partido Alto", de Leon Hirzsman. Como parte do documentário também foi feita na casa de Candeia, em Jacarepaguá, é um deslumbramento ver o Mestre explicando os passos e a riqueza rítmica do samba. As rodas no quintal do Manacéa também ficaram registradas em fotografias da capa do primeiro disco de D. Ivone Lara. Pratos servidos: galinha com quiabo de Dona Neném e corvina-de-linha, frita ou cozida.


Rua Adelaide Badajos

Adelaide Badajós Aqui fica a famosa feira das quartas, onde costumava se reunir a "confraria": Armando Passos, Manacéa, Chico Santana e Irene, Rufino, Doca e Altair (filho de Alvarenga), Argemiro e Jorge do Violão, Alvaiade, Casquinha. Ponto de encontro para a compra do peixe e para muita palavra molhada com cerveja e muito tira-gosto. Antônio Badajós Nesta rua moraram a pastora Doca e seu Altair, onde se provavam umas sopas de legumes e de ervilhas que ficaram famosas, com um pagode de primeira e onde a Velha Guarda passou a se reunir na segunda metade da década de 70. Sempre apareciam por lá Beth Carvalho, Jovelina Pérola Negra - prima da pastora Doca - e Roberto Ribeiro. Depois de ficar anos na Estrada João Vicente, entre Osvaldo Cruz e Madureira, ali pela Rua Dona Clara, o pagode da Tia Doca fixou suas bases, recentemente, na Rua Andrade de Araújo, 162, em Osvaldo Cruz. Vem formando gerações de músicos e admiradores entre os mais jovens, com muito samba na palma da mão e no gogó. Fernandes Marinho Bar do Chico, onde Chico Santana e Manacéa tomavam a saideira, depois do encontro da Confraria.

Quintal do Argemiro, numa vila, entre o boteco e a padaria, onde a Velha Guarda se reunia nos anos 80 para ensaiar, beber e saborear corvina ensopada. Ao lado da casa do Argemiro e em frente à casa do Jorge do Violão ficava o ponto de bicho do Zezinho. Contava com as presenças constantes de Martinho da Vila e do - então, iniciante - Zeca Pagodinho. Júlio Fragoso O famoso Cafofo da Surica, onde, atualmente, a Velha Guarda Show se reúne, em eventos especiais - aniversários da anfitriã, em novembro, de amigos comuns e especiais, como o da atual madrinha, Marisa Monte, comemorado em 01 de agosto de 2002.


Surica entre sua feijoada e o foco da mídia.

Especialidades: macarrão com galinha e feijoada. Na mesma vila, mora o ex-passista e ex-mestre-sala Jerônimo Patrocínio. Na mesma rua, atualmente, é realizada uma domingueira na sede do Bloco Vem que Tem, com muito samba com o grupo Baianas da Águia e Grupo B e delícias da cozinha portelense sob o comando de Ivete, irmã do saudoso Silvinho da Portela, e recepção de Vera Lúcia Corrêa - a Verinha - ex-relações públicas da Portela. Perdigão Malheiros Caxambu do Vieira, comandado por Tia Teresa, mãe de Mestre Fuleiro do Império Serrano, onde, além do caxambu, dançava-se um jongo e se cantavam partidos-altos e improvisos. Tia Vicentina e as Baianas da Águia "Provei o famoso feijão da Vicentina/Só quem é da Portela é que sabe que a coisa é divina". Este samba de Paulinho da Viola, de 1972, traduz o clima reinante comum nos encontros da família portelense. Eternizando em seus versos as famosas rodas de samba promovidas pelo inesquecível Norival Reis, Paulinho põe na boca a mítica feijoada de Tia Vicentina. Vicentina do Nascimento, a inesquecível Tia Vicentina, irmã do também mítico Natal, nos traz a lembrança das lendárias tias da Praça XI: cozinheira de mão cheia, mãe de todos, desfilou anos na Ala da Baianas da Portela e trabalhou no barracão na confecção de diversos carnavais.

Sua personalidade festeira e seu carisma podem ser conhecidos - mais ou menos, claro - através de uma saborosa história que João Batista Vargens e Carlos Monte contam em seu livro já citado: "Domingo de carnaval, 1973. Chovia muito, encharcando as fantasias e o encouramento da bateria. A águia, de penas molhadas, abria o cortejo da campeoníssima Portela. Alas evoluíam com dificuldade no asfalto pesado e o agudo das pastoras era travado pelo temporal impiedoso. O último grupamento, a Ala das Baianas, arrastava-se melancolicamente, suportando saias e rendas desfiguradas. Solitária, alguns metros atrás, uma negra redonda, ovelha desgarrada que se atrasara no desfile, jogava beijos e era ovacionada pela platéia. No dia seguinte, Estandarte de Ouro para Vicentina, a grande dama da Portela." (Neste ano, o Cinqüentenário de Fundação com Pasárgada, o amigo do rei.)

Vaidosa consigo mesma e de suas habilidades culinárias, exercia com generosidade a arte de receber e servir, fazendo e decorando com capricho os pratos fartos com todo o tipo de delícias que nos remetem ao aconchego de nossas mães e avós. Para quem viveu e saboreou aqueles tempos, a canja, o mulato-velho, o bobó de camarão, a carne seca, o macarrão com galinha, o mocotó, o angu à baiana e, especialmente, o feijão da Vicentina são lembranças atemporais. Mas Vicentina também era famosa pela voz, considerada linda e firme. Juntamente com Iara, também da Ala das Baianas e sobrinha de Seu Napoleão, participou como pastora da gravação do histórico Portela passado de glória, em 1970, um tributo aos baluartes Paulo da Portela, Antônio Rufino, Antônio Caetano, Ventura, Aniceto, Alberto Lonato, Francisco Santana, Mijinha, Manacéa, Heitor dos Prazeres, João da Gente, Alvaiade, Alcides Dias Lopes "Malandro Histórico da Portela", Armando Santos e Monarco. Para a sessão de fotos, Dona Iara emprestou sua casa, na Rua Sérgio de Oliveira, a famosa antiga Rua B, e - claro - preparou a comida.

Para a gravação, no Estúdio Havay, atrás da Central do Brasil, Vicentina levou salgadinhos e galinha, dando um toque intimista, familiar, caseiro. Foi um momento único, sem ensaio, uma gravação de primeira. Imortalizava-se a Velha Guarda. Imortalizava-se Tia Vicentina. Com a inauguração da nova sede da Portela, em 1972 - o Portelão - Tia Vicentina afastou-se do grupo para cuidar da cozinha da nova quadra. Tarefa de muita responsabilidade e que requeria alguém com a mesma grandeza. E as rodas de samba no Portelão continuaram com o sabor do feijão da Vicentina. E, entre tantas estrelas, começa a brilhar no chão portelense Clara Nunes, assídua presença. E foi nesse chão portelense que a mestiça maior pisou feliz. Sábia a sabiá! Sabia o sabor e fruía a sabedoria dos antigos, as especiarias, as sementes que se tornam caudalosas poções negras como as tias baianas e a mais intensa e profunda noite com estrelas.


Clara em uma de suas últimas fotos, num encontro de portelenses.


Até 1983, éramos uma enorme família feliz, com laços e elos inquebrantáveis. Nossa força vinha daquelas comunhões, da nossa gente, daquelas melodias, daquelas tardes feitas de cheiro e sabor. Hoje, a Guerreira e a Dama são mais duas estrelas no Céu Portelense. Depois de um longo e doloroso luto pela morte de Clara Nunes - exatos 20 anos - a Portela volta com muito sucesso a reunir sua Velha Guarda, seus admiradores, seus vizinhos, batuqueiros e partideiros para provar que saber e sabor, de fato, andam juntos. Seus encontros mensais foram iniciados no dia 21 de junho de 2003, numa bela tarde de sábado, com o céu azul servindo de moldura para um história reatada ao passado, porém, argumento para outra que se inicia. Invocando os grandes sambistas e as divindades - os quais, para nós, portelenses, habitam a mesma morada - o mestre de canto e de cerimônia Marquinhos de Osvaldo Cruz faz evocar, através da Velha Guarda, o sentimento de respeito aos antepassados e o orgulho da nossa resistência. Abrem os sentidos, despertam as emoções. E o cheiro do tempero do feijão nos remete aos tempos da felicidade adormecida em nossos corações. Ecoam as alegrias, o cotidiano, as amores perdidos, as brigas, o sentido maior da vida e da morte. Cantam-se as coisas simples da vida, as histórias, a natureza, sob a forma de sambas e partidos-altos. O canto e a dança portelenses.

Uma vez por mês, cada sábado é aguardado com ansiedade. A quinta-feira anterior é o ponto de partida do sucesso da tarde sabática vindoura, faça chuva ou faça sol. As baianas da Águia, aguerridas, as pastoras, os partideiros, todos envolvidos com a compra do feijão, das carnes, da couve, das laranjas. Dessalga daqui, põe de molho acolá. Os panelões.


Público lota o Portelão durante um dos pagodes da família portelense

A família reunida, que se prepara antes de cada encontro, dias antes se encontra para elaborar o cardápio e o repertório, os ingredientes e os acordes. A boca e o sentimento. O saber de aprender com os mais velhos o sabor do aprendizado através do tempero que torna o banal especial, único, original. Ter a sensibilidade na ponta da língua, o paladar que traduz em prazer o feijão e a palavra. E, como disse o poeta, "a palavra mais linda é a que faz cantar e todo samba, no fundo, é um canto de amor" (Noca da Portela e Toninho Nascimento).

fonte: Rogério Rodrigues

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